quinta-feira, 12 de julho de 2012

hanare

estava escuro, a noite vinha cobrindo o céu agora já só com as tintas do fim da luz do dia. o jardim era um retrato da serenidade, ladeado pelo bambu alto que projectava a escuridão  para todo o largo interior. não se vislumbrava nada, e do mestre apenas acabeça redonda rapada se destacava da veste negra que lhe cobria todo o corpo.

o hakama adivinhava-se apenas pelo volume. todo o jardim era o vazio e vazio o espaço e a noite.

o aprendiz, por favor, permanecia na dúvida sobre a existência do vazio. principalmente sobre o seu verdadeiro valor, sobre as capacidades que dele brotam. a ausência de vontade, a capacidade de fazer resultar a ausência de vontade. "por vezes, o praticante acerta o alvo, mas falha-se a si próprio..." palavras que não compreendia ainda, apesar de ter já ultrapassado a barreira dos artifícios para o hanare. Era ainda ele quem libertava a flecha e a sua vontade apontava ao alvo.

acreditava mas duvidava da real libertação, como que por respiração do universo. ousado, na última noite antes de tornar à sua terra, o aprendiz questiona o mestre sobre a verdade do tiro com arco. o mestre não respondeu, como que ofendido. depois de meses de prática, depois de correcções permanentes, a verdade porém é que o aprendiz não tinha facto para provar o que lhe era ensinado como verdade. a libertação estava escrita nos livros, e ouvia-se nas palavras do mestre. uma força diferente vergava o yumi de bambu laminado, sem dúvida, mas a verdadeira dimensão cósmica do tiro não passava ainda de uma racionalização estética.

o aprendiz, por favor, um ocidental, lógico, via como belo o tiro disparado, a flecha em voo e a fluidez do hikiwake mesmo quando o yumi estava nas mãos de alguém que, na sua terra natal, teria idade para viver num lar acamado.

o mestre, como que censurando a desconfiança, mas não resistindo em mostrar a verdade, estendeu com a mão um pequeno e fino pau de incenso. disse ao seu discípulo que o colocasse ao fundo do jardim, frente ao pequeno alvo, no centro. caminhou no breu até lá, até ao fundo do jardim quase tacteando com as pontas dos pés o caminho. acendeu o incenso, fino, fumegante. e caminhou de novo até ao mestre, expectante.

silêncio. um ligeiro ranger do bambu do yumi, uma tensão involuntária arqueando aquela força.
hanare.

o pequeno fio de fumo do incenso agitou-se, sem que ninguém visse.
sem perceber ainda o que o mestre lhe mostrara, caminhou de novo até ao fundo do jardim cinquenta longos passos e encontrou o alvo perfurado, o incenso erecto cortado a metade. a ponta acesa fumegando lentamente no chão.

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