terça-feira, 24 de julho de 2012

sangue e silêncio (reedição)

anda, entra! dizia a mãe ao miúdo assustado que chorava à porta da escola convertida em abrigo. anda depressa! continuava em desespero e o miúdo, de cara suja, chorava e teimava em ficar de fora. lá para dentro estavam todos amontoados, como objectos que se guardam nos armários quando os já não queremos.

como as velharias que se colocam nos sótãos quando não tencionamos tornar a usá-las.


pela mão puxou-o para dentro, quase à força, quase em pranto. afinal de contas, os soldados tinham sugerido que se refugiassem ali. numa escola, cuidada pelas nações unidas, onde só os civis caberiam. uma antiga escola onde houvera um dia aulas, servia agora de casa de abrigo para os seus antigos e futuros alunos.

os soldados ocupantes, de arma em punho, capacete moderno, haviam-lhe entrado em casa no terceiro dia dos bombardeamentos. sugeriram que apenas procuravam terroristas e militares escondidos. que as bombas serviriam apenas para destruir esses alvos perigosos, diziam. recomendaram-lhe, e a mais umas boas centenas de mães e crianças, que se refugiassem na escola, que aí não cairiam as bombas.

ao quarto dia dos bombardeamentos, a mãe puxou o miúdo para o colo. lembrou que já perdera o filho mais novo e o marido. que queria proteger este puto com tudo o que tinha, com todas as suas forças. carregou numa mochila uns mantimentos ligeiros e no braço levou o rapaz. atravessou uma ex-cidade quase de ponta-a-ponta. ouviu silvos de balas mortais perto dos seus cabelos, saltou por cima de corpos moribundos e cadáveres cobertos de sangue. encostou-se a paredes devastadas, ouviu os gritos das velhas desesperadas, ainda deu água a um rapaz que corria perdido nos escombros.

chegou finalmente à escola, à segurança. os soldados, apesar de ocupantes, queriam apenas suprimir a ameaça que viam nas nossas estruturas militares ou para-militares, pensou. contrariada, refugiou-se, por não poder largar a criança, por não poder pegar o destino e a revolta nos seus braços, por não poder, não ter as forças, para expulsar da sua terra os soldados dos capacetes, metralhadoras, caças e bombardeiros, os tanques da opressão. conformou-se à sua condição de fraca, oprimida, mas mãe forte e fonte de coragem para proteger o que é seu porque lhe nasceu de dentro.

conseguiu finalmente trazer o miúdo para dentro, embora o seu choro fosse agora ainda mais agudo. dentro da escola-abrigo, juntou-se às centenas de mães que traziam ao colo ou pela mão os filhos e as filhas, aos outros pequenos que por ali choravam agarrados às mães. lá dentro uma massa de gente que abandonara tudo, que perdera já muito. gente que não sabia o que lhes reservaria o amanhã.

dois dias depois, depois de ali comer e dormir, ou não dormir, uns segundos de silêncio acompanharam um olhar colectivo, surpreendido, revoltado e choroso, para o bombardeiro que passou nos céus acima da escola. as lágrimas não tiveram tempo de escorrer, as mãos mal tiveram tempo de se cerrar. o silêncio tomou-os todos, mães e crianças. um assobio de morte ao cair da noite converteu a escola em ruínas de sangue e silêncio.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

- sem título -

são desprovidos de adorno os versos da minha vida,
e muitas vezes de sentido.

mas nuas são tão mais belas as palavras.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

hanare

estava escuro, a noite vinha cobrindo o céu agora já só com as tintas do fim da luz do dia. o jardim era um retrato da serenidade, ladeado pelo bambu alto que projectava a escuridão  para todo o largo interior. não se vislumbrava nada, e do mestre apenas acabeça redonda rapada se destacava da veste negra que lhe cobria todo o corpo.

o hakama adivinhava-se apenas pelo volume. todo o jardim era o vazio e vazio o espaço e a noite.

o aprendiz, por favor, permanecia na dúvida sobre a existência do vazio. principalmente sobre o seu verdadeiro valor, sobre as capacidades que dele brotam. a ausência de vontade, a capacidade de fazer resultar a ausência de vontade. "por vezes, o praticante acerta o alvo, mas falha-se a si próprio..." palavras que não compreendia ainda, apesar de ter já ultrapassado a barreira dos artifícios para o hanare. Era ainda ele quem libertava a flecha e a sua vontade apontava ao alvo.

acreditava mas duvidava da real libertação, como que por respiração do universo. ousado, na última noite antes de tornar à sua terra, o aprendiz questiona o mestre sobre a verdade do tiro com arco. o mestre não respondeu, como que ofendido. depois de meses de prática, depois de correcções permanentes, a verdade porém é que o aprendiz não tinha facto para provar o que lhe era ensinado como verdade. a libertação estava escrita nos livros, e ouvia-se nas palavras do mestre. uma força diferente vergava o yumi de bambu laminado, sem dúvida, mas a verdadeira dimensão cósmica do tiro não passava ainda de uma racionalização estética.

o aprendiz, por favor, um ocidental, lógico, via como belo o tiro disparado, a flecha em voo e a fluidez do hikiwake mesmo quando o yumi estava nas mãos de alguém que, na sua terra natal, teria idade para viver num lar acamado.

o mestre, como que censurando a desconfiança, mas não resistindo em mostrar a verdade, estendeu com a mão um pequeno e fino pau de incenso. disse ao seu discípulo que o colocasse ao fundo do jardim, frente ao pequeno alvo, no centro. caminhou no breu até lá, até ao fundo do jardim quase tacteando com as pontas dos pés o caminho. acendeu o incenso, fino, fumegante. e caminhou de novo até ao mestre, expectante.

silêncio. um ligeiro ranger do bambu do yumi, uma tensão involuntária arqueando aquela força.
hanare.

o pequeno fio de fumo do incenso agitou-se, sem que ninguém visse.
sem perceber ainda o que o mestre lhe mostrara, caminhou de novo até ao fundo do jardim cinquenta longos passos e encontrou o alvo perfurado, o incenso erecto cortado a metade. a ponta acesa fumegando lentamente no chão.

- sem título -

inspiro
um sopro dos lábios
percorre-me como uma brisa
e lembra-me os sussuros
e os murmúrios dos primeiros dias.

de pureza.

expiro
um beijo fugido
escapa-se-me dos lábios
e lembra-me a partida fria
e a neblina escura do fim.

da pureza.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

quinta-feira, 5 de julho de 2012

longe

estrelas e um céu aberto,
do fundo do vale o manto espalha-se
ao topo da montanha,
de onde os deuses entoam o mais belo cântico
da poesia, chamando o trovão e a maresia.
é noite mas resplandece uma chama,
ao fundo, longe, sobre o mar,
a do teu olhar.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

- sem título -

a vida abandonou o meu corpo
e o meu corpo perdeu o seu sopro.
passear-me-ei vazio por entre as gentes,
como se não ocupasse espaço.