sexta-feira, 24 de maio de 2013

poder (reedição)

à luz estranha das tochas decorativas do jardim, sob o ar denso do final das tardes de verão, com as encostas tímidas ainda insinuadas no fim da paisagem onde o sol se pôs, conversámos de pé.

fiz-lhe companhia naquela noite até ali, mas sabia que em breve ele teria de ir aqui e além apertar as mãos dos outros. os fatos escuros passeavam-se por ali, uns sós, outros acompanhados. os gordos encostavam-se a uma coluna ou a uma ombreira de porta – olhando o jardim desinteressados, bocejando o tédio cá para fora, desejando o sono lesto sob o calor húmido. geralmente acompanhados de suas senhoras, que tão bem decoravam o espaço, valha-nos deus com aquelas vestes absurdas de verde, de amarelo, de tantas cores, e aquelas jóias de outros tantos tons que nos passavam diante dos olhos sem que tivéssemos sequer tempo de lhes apreciar a beleza, tal a rapidez com que nos apercebíamos da fealdade do conjunto.

o jardim estava separado por um balcão de pedra esculpido em pilares polidos. Junto à casa, o chão de pedra dificultava os saltos das senhoras e lá em baixo, na relva prateada pelo luar, junto à pequena fonte de inspiração clássica, passeavam de copo em riste os outros que não se rendiam ao sono e ao tédio. por ali voavam palavras distantes dos assuntos do trabalho, pouco importava a situação económica do reino-unido ou as explorações de petróleo no médio-oriente. a situação política do continente asiático também se ficava no chão de pedra onde as senhoras custavam a equilibrar-se.

enquanto ele cumpriu o seu negócio, aproveitei a noite para raros momentos de ócio em tão belo jardim. longe do sol abrasador e das lanças do calor, aproveitei as escadas que desciam até à relva e o caminho escurecido pelas folhagens em arcada para fazer descair, ponderadamente e e com gesto bem cuidado e estudado, um pouco a alsa do ombro direito, anunciando o pescoço, onde descansava o fino e simples fio de prata. o copo seco foi atirado para cima de uma bandeja que passava, trocado por outro, com a dose de martini para desfazer o sabor dos chocolates horríveis que me tinham obrigado a comer, vindos sabe-se lá donde. e ali foi o copo vazio trocado por um cheio, para que se cumprisse o destino das coisas.

a lua brilhava forte, e o ar quente acolhia o seu brilho como num abraço, a relva parecia húmida de tanto luar. sobre a prata da relva e sob o clarão da lua, encostei-me à bancada da varanda, feliz. de ombros nus ao calor, um pouco turva e confusa de sentidos, de alcoól e de conversas alheias. sentia no pescoço aquela brisa de verão que por si só nos faz sorrir. outro se juntou, elegante, gravata escura, cigarro aceso, puxando um fumo calmo e sereno. trazia um e outro copo, cheios. passou-me um com uma boa noite aconchegante e vibrei. tirei apenas uma mão do balcão da varanda, para lhe receber o copo, agradecendo com um olhar nos olhos que se deslocou em aceno para o seu peito. as palavras de circunstância são nestas ocasiões absolutamente desprovidas de qualquer substância, como aliás, lhes costuma ser característico. por isso mesmo, me falou sem enfeites logo após perguntar o meu nome. em tons de sedução tão óbvios quanto motivantes e eu sentia-me o centro, o motor da sua vaidade.

o meu corpo aberto, sob um vestido de ofensiva e pecadora transparência, mostrava-se-lhe com impulso próprio. e eu que era apenas convidada como acompanhante... lá em cima a minha companhia, olhava pelo canto do olho a minha aventura descabida, despreocupado. senti o olhar e abandonei-me. o meu poder era infinito naquele momento. em mim se concentravam as belezas e as forças do mundo todo daquele momento daquelas vidas. e o poder de ser eu, de provocar despreocupação por amor profundo, de suscitar excitação por gozo puro... era esse o meu desígnio por minutos.

o próprio poder era eu. bastava-me querer que o rídiculo cobriria de negro aquele homem e nem uma ponta de vergonha o tocaria por isso. não era ele que me excitava, mas sim eu sobre ele. não era amor ali na bancada da varanda, era poder. e mesmo assim, apeteceu-me por instantes o abandono de tudo, entregar-me. encostar nu o peito ao peito forte de outro, dele ali tão perto e tão disponível, tão entregue e desprotegido.

perderia a noção de quem seria afinal o poder. porque o poder de seduzir está na capacidade de negar, mesmo que no último momento os sopros do prazer. a corporização reduz o poder ao mero desejo mortal, comum ensejo de homens e mulheres que não se amam. por isso mesmo, o olhar que diz sim é um corpo que diz não. é isso que me eleva onde nenhum orgasmo promíscuo me levará, porque é esse o meu poder.

os copos já vazios, sob a bancada, lá em baixo o rio ria-se de mim, sentia-me intimamente palpitar.
A conversa durou o tempo exacto para que ninguém desmotivasse, pelo contrário. Virei as costas com boas noites delicadas, um olhar demorado ainda o agarrou uns instantes enquanto me afastava. seguiu-me, e sem que soubesse, tremi e senti o terrível vazio do início de noite. Mas eis que dou os braços à minha companhia. Ao meu homem. E me vou.

1 comentário:

M. disse...

Extraordinária capacidade... Tão bem escrito. Gostei muito.