quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

sem título

vim ao mundo montado numa semente de tempestades
como todos os outros
e foi sempre a chuva no rosto que se confundiu com lágrimas
quis cavalgar o tempo como a crista da duna
de um deserto sem fim
e as cidades apareceram no horizonte
todas habitadas de estações do ano
e pequenas amplitudes térmicas

estávamos nus nesse sonho de humanidade
e sorvíamos dos lábios uns dos outros
as gotas de timidez enquanto sorríamos levemente
as florestas tropicais cobriam nossos corpos de lama
e os rios lavavam as almas ardentes no seu caudal

a bruma envolve a lâmina por sobre a qual caminhamos
afiada sob os pés descalços
sem perdão e em sangue
não há forma de caminhar sem deixar rasto
e os batedores pouco treinados podem encontrar-nos
camuflados uns entre os outros
em pilhas de gente viva que finge como batráquios
a morte.

sem título

em quanto mar
em quantas léguas de tempestade
persiste intacta esta embarcação

é por ter alma de recife
que vivo submerso
e morro afogado
a cada inspiração.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

sem título

este é o meu solo
marejado pela bruma 
salgado pelo suão
não sou árvore e - certamente
fora do reino 
seria erva daninha -
mas é este o substrato das minhas raízes
braços ao alto coração de seiva
o mar constante.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

estética do domínio

quando Jenner descobriu o poder de inocular organismos com agentes infecciosos enfraquecidos estava a salvar a humanidade de pragas desnecessárias. o capitalismo aprendeu os princípios da vacina: hoje já não nos esconde a verdade, faz dela filmes de sucesso, êxitos de bilheteira onde pagamos para aprender como funciona a bolsa de valores, o mercado financeiro, a exploração dos diamantes em África, como funcionam as farmacêuticas, as empresas de tabaco, enquanto comemos umas pipocas.

ao jantar, com sorte ainda vemos umas bombas a destruir uma escola ou duas no noticiário.

o agente infeccioso, enfraquecido - porque é diferente aprender sobre diamantes de sangue a comer pipocas do que a levar chicotadas; porque é diferente ver uma criança a morrer de fome do que não ter como alimentar um filho -, entra-nos pelo sangue adentro.

doses homeopáticas de verdade. eis a vacina contra a acção, a imunização da revolta e a estetização da miséria.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

círculo

estes versos não fazem falta nenhuma,
não têm destino de ser cimento das almas partidas 
nem podem ser fogo de artifício a abrir-se em flores
na alegria de uma noite de verão,
são o que não falta 
apesar de faltar verdade 
e serem verdade 
as letras 
não destes, mas de todos os versos do mundo 
que são verdade
por não fazerem falta.